quarta-feira, 30 de abril de 2014

Povo Munduruku convoca governo federal para discutir território indígena

Fonte: CIMI

Após uma semana de intensas reuniões, indígenas da etnia Munduruku decidiram, em Assembleia com caciques e representantes de mais de 60 aldeias, convocar o ministro da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, o ministro de Minas e Energia, o presidente da Eletrobrás, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Ministério Público Federal (MPF) para uma reunião na próxima quinta-feira (1 de maio) na aldeia Sai Cinza, Jacareacanga, Pará. Entre as pautas estão a demarcação de uma terra indígena no Médio Tapajós, o fim de pesquisas e concessões de lavra no subsolo de terras indígenas.

A decisão aconteceu após o anúncio de uma audiência marcada para o dia 6 de maio, em Itaituba, onde deve ser apresentada a Avaliação Ambiental Integrada (AAI) do Complexo hidrelétrico do Tapajós. “O governo fala que a gente não quer diálogo. Então, a gente decidiu que somos nós que temos que marcar audiência, consulta prévia, não o governo. O governo tem que ouvir e dialogar dentro do nosso território. Não somos nós que temos que ir atrás do governo. O governo que tem que vim e dialogar com o povo Munduruku dentro das aldeias”, diz Kabaiwun Kaba, membro do movimento Munduruku Ipereg Ayu.

Em carta enviada à Secretaria Geral da Presidência, os indígenas afirmam que antes de qualquer audiência e apresentação de estudos, os Munduruku querem a demarcação da Terra Indígena Sawré Maybu, localizada no Médio Tapajós, próximo de Itaituba. Outra demanda é a suspensão das autorizações de pesquisa e lavra mineral do subsolo em território indígena, emitidas pelo Departamento Nacional de Produção Mineral para grandes mineradoras, como a Vale. A empresa já possui licença para pesquisa mineral em grande parte do território indígena. Segundo Kabaiwun Kaba, os Munduruku decidiram que tanto as hidrelétricas quanto os projetos minerais previstos para o Tapajós devem ser combatidos pelos indígenas. “Para nós tudo é sagrado. Tanto o rio, a terra, o vento, o fogo, a floresta. Tudo é sagrado. Então, quando o governo diz que vai fazer alguma coisa na nossa terra, dói no nosso coração porque a gente faz parte de tudo isso”, afirma.


O complexo Tapajós é um conjunto de sete grandes usinas hidrelétricas – São Luiz do Tapajós, Cachoeira do Caí, Jatobá, Jamanxin, Cachoeira dos Patos, Jardim do Ouro e Chacorão. Segundo informações publicadas no folheto de propaganda do complexo, o lago formado terá cerca de 800 km², quase o dobro da inundação prevista para a usina de Belo Monte.

Atraso na demarcação de terra e pressa no licenciamento

Com eleições marcadas para outubro deste ano, o governo federal vem tentando de todas as formas avançar com o processo de licenciamento do complexo de hidrelétricas do Tapajós. Um exemplo disso é que em 2012 a presidenta Dilma Rousseff reduziu os limites de sete unidades de conservação (UCs) para viabilizar a construção de oito grandes barragens na Amazônia, entre elas, a UHE São Luiz do Tapajós.

Se construída, UHE São Luiz do Tapajós alagará os municípios de Trairão e Itaituba, além de comunidades indígenas ainda não demarcadas. No final de 2013, a presidenta da Funai, Maria Augusta Assirati, se comprometeu com os indígenas em publicar até março deste ano o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Sawré Maybu, porém, o relatório, já aprovado pela Diretoria de Proteção Territorial (DPT) até agora não foi divulgado no diário oficial da União.


Leia abaixo ou clique aqui para ler a carta na íntegra


Ao governo brasileiro e à sociedade brasileira

Nossos caciques, pajés, lideranças, guerreiros, mulheres e crianças do povo Munduruku, reunidos na terceira assembleia do Movimento Munduruku Ipereng Ayu, declaramos para o poder judiciário e a sociedade brasileira que temos total disposição para dialogar um processo democrático de consulta prévia, livre, informada e de boa fé, conforme a convenção 169 da OIT.

Para continuar esse diálogo, que não é negociação dos nossos direitos, convidamos o ministro Gilberto Carvalho, Ministro das Minas e Energia, Presidente da Eletrobrás, Funai, Ministério Público Federal e observadores da sociedade civil, para um encontro na aldeia Sai Cinza, município de Jacareacanga, PA, a ser realizado no dia 1 de maio de 2014.

Queremos que o governo prove sua boa fé, publicando o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Sawré Maybu do Médio Tapajós, e o cancelamento de todas as licenças de pesquisa e lavra no subsolo da Terra Indígena Munduruku emitidas pelo Departamento
Nacional de Produção Mineral para grandes empresas mineradoras.


Assembleia Munduruku, aldeia Missão Cururu, 25 de abril de 2014

Respeitosamente,


Josias Manhuary Munduruku – Líder dos guerreiros
Maria Leusa Cosme Kaba Munduruku – Representante das mulheres
Vicente Saul Munduruku – Cacique aldeia Sai Cinza
Arlindo Kaba Munduruku – Cacique aldeia Missão

terça-feira, 29 de abril de 2014

Campanha Tamuaté-Aki - Conhecimento indígena

A Campanha Tamuaté-Aki reúne pessoas e organizações com o objetivo comum de apoiar os povos indígenas no Brasil na defesa de seus direitos. Os mais de 305 povos indígenas brasileiros caracterizam um patrimônio da diversidade sociocultural do Brasil que se reflete nos seus conhecimentos e modos de vida, em 274 línguas e uma imensa variedade de expressões artísticas e rituais. A demarcação dos territórios indígenas, hoje paralisada, é condição básica de sobrevivência para esses povos.





Campanha Tamuaté-Aki - O que diferencia um índio perante a lei?

Campanha Tamuaté-Aki - O que é a PEC 215?

Campanha Tamuaté-Aki - Quais são as maiores ameaças aos direitos indíg...

Campanha Tamuaté-Aki - Quais são os direitos dos índios?

Campanha Tamuaté-Aki - O que o índio quer?




segunda-feira, 28 de abril de 2014

Hidrelétricas de Rondônia teriam pago propina para deputados votarem perdão fiscal, diz Valter Araújo

REVELAÇÕES CRIMINOSAS
Vazaram as primeiras informações referente a delação premiada de políticos, empresários, servidores públicos presos e envolvidos em operações policiais e investigações dos Ministérios Públicos Federal e Estadual.

O jornal eletrônico Painel Político teve acesso ao teor de ações judiciais onde o ex-presidente da Assembleia Legislativa de Rondônia, Valter Araújo, em depoimento de aproximadamente cinco horas, revelou ao Ministério Público Federal o suposto funcionamento de um esquema de pagamento de propina que teria rendido cerca de R$ 1 milhão para deputados. (Foto - Gilmar de Jesus).

Os valores seriam destinados para políticos votarem a favor do projeto de lei que perdoa dívidas estaduais dos empreendimentos hidrelétricos de Jirau e Santo Antônio. A declaração de Araújo teria sido feita para Reginaldo Pereira Trindade, procurador geral da república.
O dinheiro da propina chegou a ser transportado por um deputado na carroceria de sua camionete. A primeira parcela do pagamento foi de R$ 500 mil, mas um intermediário da negociação, descontou R$ 37 mil. Dois deputados não teriam participado inicialmente do esquema: o próprio delator, e Hermínio Coelho (PSD), atual presidente da Assembléia Legislativa.
Interceptações telefônicas realizadas pela Polícia Federal, há três anos durante uma operação policial já antecipavam negociações envolvendo valores altos em dinheiro.
Escuta ambiental no carro de Rafael Santos, um assessor de Valter Araújo, indicava diálogos para transferência de valores e pagamento de uma camionete de uma cooperativa de crédito na cidade de Pimenta Buento (RO).
Segundo o jornal eletrônico, a isenção de impostos seria de aproximadamente R$ 600 milhões naquele ano. Um então secretário de fazenda de Confúcio Moura, governador de Rondônia, levantou a suspeita que Valter Araújo teria sido beneficiado com até R$ 10 milhões do acordo com as hidrelétricas.
Também teriam feito uso da delação premiada: Alberto Ferreira Siqueira (Beto Bába), Fernando Braga Serrão (Fernando da Gata) e o ex-secretário adjunto de Saúde de Confúcio Moura (PMDB), José Batista das Silva.

ISENÇÃO IMPOSTOS – O projeto de lei de autoria do Governo de Rondônia previa isenção de até R$ 1 bilhão em Impostos sobre Circulação de Mercadorias (ICMS), nas operações de aquisições interestaduais de mercadorias para emprego na construção e de bens para as empresas vinculadas à construção das Usinas Hidrelétricas e das linhas de transmissão relacionadas às Usinas de Santo Antônio e Jirau.
Segundo a Lei, estavam isentas do ICMS as importações de máquinas, aparelhos, equipamentos, suas partes e peças e outros materiais, sem similar nacional. Desembargadores do Tribunal de Justiça, entenderam que havia vício formal e material na edição da lei, por julgaram a inconstitucionalidade.
Os descontos propostos pela lei eram de não pagamento de até 92,31% do imposto devido.

MANOBRA POLÍTICA – Os deputados estaduais Edson Martins (PMDB), e Kaká Mendonça (PTB), ambos do bloco governista, foram os responsáveis pela articulação política na Assembléia Legislativa para que o projeto de lei de isenção de impostos para as hidrelétricas fosse aprovado. Os deputados agiam em acordo com o Confúcio Moura, governador, e a bancada aliada inclusive do Congresso Federal.
Edson e Kaká fizeram manobras para impedir que Hermínio Coelho (PSD), Euclides Maciel (PSDB), Epifânia Barbosa e Cláudio Carvalho (PT) pedissem vistas da lei ou votassem contra o perdão fiscal.
"As Usinas, mais uma vez, estão sendo beneficiadas em detrimentos dos pequenos. Os danos ambientais e sociais causados pelas Usinas a Rondônia não estão sendo levados em conta. Por isso, sou contra este projeto", disse Hermínio Coelho na época.

DIREITOS POLÍTICOS CASSADOS - Valter de Araújo Gonçalves, foi condenado a sete anos de prisão a ser cumprida em regime semiaberto e teve os direitos políticos cassados, e, agora reaparece como "salvador da pátria". Procurado até pela Interpol, ele foi preso várias vezes, mas conseguiu liberdade em corte superior.
Valter de "santo" não tem nada, e pode ter entregado apenas um terço de seus desafetos pensando numa futura campanha política e mais acordos escusos de seu interesse.
O ex-deputado foi denunciado (crime de corrupção ativa) por oferecer R$ 60 mil em dinheiro a deputada Epifânia Barbosa da Silva, para que mudasse sua posição na votação de projeto de lei, de interesse de empresários ligados ao ramo turístico.
Segundo consta nos autos, o ex-presidente não agia como agente público, mas como particular, tendo em vista o favorecimento de um grupo específico. Em sua defesa, o ex-parlamentar alegou que se tratava de um empréstimo, porém, as interceptações demonstram todo o cuidado que ele tinha para não ver desvendado a sua empreitada criminosa.
Araújo foi apontado como líder de uma quadrilha que desviou mais de R$ 60 milhões dos cofres públicos. O esquema foi descoberto durante a operação Termópilas realizada pelo Ministério Público de Rondônia, em conjunto com a Polícia Federal em novembro de 2011.
O bando supostamente liderado por Araújo, usava laranjas em empresas que prestavam serviço para o Estado e Assembléia Legislativa e agia "loteando" licitações e contratos mediante corrupção e tráfico de influência. Dos oito deputados envolvidos apenas Araújo foi preso e condenado.
Agência Vanguarda, não obteve retorno das tentativas de contato com Jirau e Santo Antônio, as duas usinas hidrelétricas instaladas em Rondônia. Também foram solicitadas informações do MPE e MPF.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

 O escândalo do licenciamento ambiental das hidrelétricas no rio Tapajós – Parte 2

Mapa: Terras indígenas Fonte: Sumário Executivo AAI Tapajós

Os indígenas e a comunidade Pimental

O relatório é dramático e mostra o quanto as aldeias Munduruku estavam desassistidas, abandonadas com relação à saúde. Faltavam medicamentos e técnicos de saúde. Crianças estavam morrendo de malária. A distribuição dos medicamentos estava precária e insuficiente. Os postos de saúde, abandonados, estavam entregues à sujeira e aos morcegos. Faltavam comida, macas, enfermarias e quartos na Casa de Apoio a Saúde Indígena (Casai) de Itaituba e Jacareacanga. Há mais de seis meses não havia combustível para deslocamento dos profissionais da saúde na região do Teles Pires. [Para não comemorar o Dia do Índio]

Por Telma Monteiro

Menos de um mês depois de autorizada a retomada do processo de licenciamento da UHE São Luiz do Tapajós, em 09 de fevereiro de 2012, uma nova minuta do Termo de Referência (TR) [para elaboração do EIA/RIMA], revisado e alterado, foi encaminhado pelo Ibama à Eletrobras. A partir daí tudo foi rápido. O plano de trabalho para o levantamento biótico foi aprovado. O primeiro pedido de supressão de vegetação protocolado. Sem tempo a perder.

Em 16 de fevereiro os representantes da Eletrobras, Eletronorte, CNEC [responsáveis pela elaboração dos estudos ambientais] e Ibama se reuniram no escritório da Eletrobras em Brasília, para discutir a minuta do TR.

No dia seguinte (17), a Funai oficiou o Ibama sobre o seu descontentamento com o TR. Aludiu à Portaria Interministerial 419/2011 que considera haver interferência em terras indígenas situadas até 40 quilômetros de um projeto hidrelétrico. E se as terras indígenas estiverem a 20 quilômetros a montante (rio acima) do reservatório, elas estão sujeitas aos impactos decorrentes da construção de uma hidrelétrica. 

“(...) estabelece presunção de interferência em terras indígenas para aproveitamentos hidrelétricos localizados, na Amazônia Legal, a até 40 km de distância de terras indígenas, ou situados na área de contribuição direta ou reservatório, acrescido de 20 km a jusante”.

O ofício da Funai não só menciona a Portaria 419/2011, como lista as terras indígenas que estão situadas nos limites estabelecidos por ela. As TIs Andirá-Marau, km 43, Pimental, São Luiz do Tapajós, Praia do Mangue e Praia do Índio, se enquadram na portaria. Mesmo em processo de delimitação, as três primeiras se encaixam na portaria e as duas últimas estão sob supervisão de Grupo Técnico objeto de outra portaria (n°1.050/PRES.)

A Funai determinou, então, que todas as TIs mencionadas no ofício fossem contempladas no TR do Estudo do Componente Indígena (ECI) e, ainda, que o estudo da Referência n° 09, de índios isolados, com status de “não confirmada”, localizada no interflúvio com a bacia hidrográfica onde se planeja a construção da UHE São Luiz do Tapajós, era prioridade da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC).
No mesmo dia, 17 de fevereiro de 2012, o Ibama expediu o TR definitivo que orientaria o EIA/RIMA.

Um fato positivo. Do TR, com 36 páginas, consta uma exigência de grande importância e inédita nos processos de licenciamento ambiental de hidrelétricas: a apresentação de um Estudo de Cumulatividade e Sinergia da Bacia do rio Tapajós. Deve, determinou o Ibama, haver uma avaliação de todos os efeitos/impactos cumulativos e sinérgicos decorrentes da implantação das hidrelétricas previstas na Bacia do rio Tapajós.

O IPHAN também emitiu um TR independente que determinou serem necessários estudos etnoarqueológicos, uma vez que a região do rio Tapajós se caracteriza pelas atividades de subsistência das populações indígenas. Ressaltaram especialmente os Munduruku e as terras indígenas já mencionadas pela Funai. O IPHAN observou ainda   que deveria ser garantido o processo participativo das comunidades afetadas. 

Convidados para contribuir com o TR, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), fez algumas observações e uma delas, em especial, foi desconsiderada: a de trazer para o momento atual, a comparação entre as propostas constantes nos estudos de inventário e a tecnologia escolhida, em relação a outras opções de energia renovável. Infelizmente, essa contribuição não foi adicionada no TR.  
A Eletrobras tentou, ainda uma vez, alterar o TR, embora o Ibama tenha dado como definitiva a versão final acordada na reunião.

Mapa Bacia do Tapajós - Fonte: Sumário Executivo AAI da Bacia do Tapajós

A vistoria

Em junho de 2011, o Ibama fez uma vistoria técnica para reconhecimento da área de influência da UHE São Luiz do Tapajós. O relatório dessa vistoria só foi apresentado em 17 de janeiro de 2012 e nele há alguns relatos importantes. Um deles diz respeito ao primeiro ponto vistoriado, a comunidade de Pimental, onde os moradores já se sentiam desrespeitados depois de serem surpreendidos pela visita inesperada de funcionários da Eletrobras. O conflito já começara na comunidade de Pimental.

Na comunidade de Pimental moram aproximadamente 800 pessoas e lá foi o local escolhido, no projeto, para a implantação da barragem da UHE São Luiz do Tapajós. Pesca artesanal e criação de peixes ornamentais são as principais atividades. As famílias foram pegas de surpresa com a presença da equipe do empreendedor.

O relatório da vistoria também acusa a presença de muitos barcos garimpeiros no trecho planejado para o reservatório e dentro do Parque Nacional da Amazônia. Os técnicos do Ibama visitaram, ainda, as comunidades Palhal, Raiol, São Luiz do Tapajós e Vila do Tapajós. Com todas essas comunidades, essa é a região que numa entrevista recente, Altino Ventura Filho, secretário executivo do Ministério de Minas e Energia, declarou que é desabitada, o que justificaria a escolha do governo para a construção da hidrelétrica.

O descaso do governo com os Munduruku

Nesse estágio do processo, as lideranças Munduruku de todas as aldeias, em carta ao Ministério de Minas e Energia, se recusaram a permitir a realização de pesquisas para os estudos ambientais, sem uma prévia reunião com as autoridades.   

Junto com a carta, uma comissão de lideranças indígenas apresentaram um relatório sobre as visitas feitas nas aldeias das TI Munduruku e Saí Cinza no período entre 19 de janeiro a 5 de fevereiro de 2012. O relatório é um levantamento da situação terrível em que os índios se encontravam.

As lideranças visitaram nove Polos Base que congregam 55 aldeias nos rios da Tropa, Kabituto, Cururu e Tapajós. A população indígena ouvida reclamou da falta de assistência e da falta de fiscalização da Funai. Sem exceção, reivindicaram uma reestruturação da Funai e mais recurso para a coordenação regional do Tapajós.

O relatório é dramático e mostra o quanto as aldeias estavam desassistidas, abandonadas com relação à saúde. Faltavam medicamentos e técnicos de saúde. Crianças estavam morrendo de malária. A distribuição dos medicamentos estava precária e insuficiente. Os postos de saúde, abandonados, estavam entregues à sujeira e aos morcegos. Faltavam comida, macas, enfermarias e quartos na Casa de Apoio a Saúde Indígena(Casai) de Itaituba e Jacareacanga. Há mais de seis meses não havia combustível para deslocamento dos profissionais da saúde na região do Teles Pires.

Para as lideranças tudo isso seria um sinal de que o governo não liga para o sofrimento dos indígenas. Faltam peças de reposição para motores de bombas d’água e motores de popa. Não há voo para atender os pacientes com emergência. É o relato do caos e do abandono. Sem misericórdia.

Continua na Parte 3
Maria Rita Kehl: Índios vivem hoje situação parecida com a da ditadura

A psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade, diz que situação atual dos índios é parecida com a da ditadura

Por Guilherme Freitas

Em novembro de 2012, foi criado um grupo de trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV) para investigar violações de direitos humanos sofridas por índios e camponeses. Desde então, a psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da CNV e coordenadora do grupo, visitou povos indígenas no Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul do país. Os depoimentos e relatórios colhidos até agora compõem um painel de abusos sistemáticos cometidos ao longo do período analisado pela comissão (1946 a 1988), em especial durante a ditadura. Inúmeras mortes foram causadas por obras do governo em terras indígenas (como a construção de estradas na Amazônia), sem estudo nem aviso prévio. Frentes de contato despreparadas levaram doenças a tribos isoladas. Há ainda denúncias de trabalho escravo, trabalho infantil, torturas e prisões irregulares. Em entrevista por telefone, Maria Rita Kehl avalia os trabalhos desse grupo da CNV e diz que a situação dos índios hoje é “muito parecida” com a do período da ditadura: “Em todas as audiências públicas surgem também denúncias atuais”.

Leia também: O cerco aos índios na ditadura e na democracia 


Quais foram as maiores violações de direitos dos índios identificadas até aqui pela CNV?

O tema das agressões a índios no Brasil é muito vasto. Estamos convocando a entrar em contato conosco todos que puderem nos indicar violações cometidas em locais isolados ou que não foram noticiadas. O primeiro relatório que recebi, no início dos trabalhos, foi sobre o massacre dos waimiri-atroari, de Roraima. Pelo menos entre 1.300 e 1.500 índios morreram durante a ditadura em consequência da abertura da BR-174 (Manaus-Boa Vista). As causas foram várias. Como não houve aproximação adequada para o contato e os índios não foram informados sobre as obras, eles ouviam as máquinas, saíam das aldeias para ver o que estava acontecendo e eram recebidos a tiro. Como também não houve vacinação, muitos morreram por epidemias. E os índios contam que, durante as obras, aviões passavam e jogavam “uma coisa que não queimava o mato, mas queimava a gente por dentro”. Obviamente não há documentos oficiais sobre isso, mas, pelos relatos, podia ser pesticida.

Que outros povos indígenas foram afetados durante a ditadura?

Além dos waimiri-atroari, fiz mais viagens a aldeias. Os ianomâmi, também em Roraima, enfrentaram a construção de uma estrada, a Perimetral Norte, na terra deles nos anos 1970, sem estudo prévio. Conversei com um ex-agente da Funai, hoje com 80 anos, que se demitiu na época alegando que não queria ser “coveiro de índio”. Ele me disse que as principais causas de morte foram sarampo e gripe e que as frentes da Funai não tomavam vacina, nem remédio, mesmo sabendo que fazer contato assim era como jogar uma bomba no meio dos índios. Visitei os suruí, na região do Araguaia, onde muitos índios foram torturados em interrogatórios sobre a guerrilha, mesmo não sabendo de nada. Nenhum deles foi anistiado ou indenizado até hoje. Vivem num pedaço de terra minúsculo, praticamente uma favela às margens da Transamazônica, e tiveram o acesso ao rio cortado pelo fazendeiros. Há pouco tempo os xavantes, do Mato Grosso, entregaram um relatório. Fizeram uma cerimônia muito emocionante, primeiro descreveram os abusos na língua deles e depois traduziram para nós. A situação varia em cada região, mas há um padrão de descaso e violência.

Você esteve em regiões onde há ameaças a povos indígenas hoje?

Em todas as audiências públicas surgem também denúncias atuais. O relatório da comissão vai de 1946 a 1988, então não podemos incluir casos de hoje, mas podemos transmitir essas informações ao governo. Fui ao sul da Bahia, onde pataxós e tupinambás sofreram na ditadura e sofrem hoje com ataques de latifundiários e com a presença do Exército na região. Enviei para a presidente Dilma, mas não sei se ela recebeu, o depoimento do cacique Babau, dos tupinambás, que está sendo perseguido. Ele diz que o importante para os índios é ter sua terra, e não receber cesta básica, porque é na mata que eles têm seu modo de vida e fora dela eles perdem as condições para manter sua cultura. Estive também no Mato Grosso do Sul para ouvir os guarani kaiowá, que até hoje vivem uma situação dramática, sem a homologação das terras. Lá estamos investigando a exploração de trabalho escravo e trabalho infantil indígena. O que precisamos determinar é se houve apoio do Estado a ações de empresas e fazendeiros. Os índios dizem que forças da polícia e do Exército eram acionadas com frequência para reprimi-los. É um padrão que se repete até hoje, e na ditadura foi ainda mais grave: quando a polícia é chamada para atuar contra índios, não pergunta quem tem razão. Os guaranis me disseram: “A gente sabia que quando vinham os de bota preta era pior”.

A Comissão também vai investigar denúncias sobre prisões e torturas de índios, como as que envolvem o antigo Reformatório Indígena Krenak, em Minas Gerais?

Sim, já temos um relatório sobre Krenak, com denúncias consolidadas. O Relatório Figueiredo aponta também violações cometidas em postos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Muitos deles tinham pequenos presídios indígenas. O relatório menciona um tipo de punição, conhecida como “tronco”, mas diferente daquela aplicada a escravos. Esse “tronco” era uma espécie de forquilha feita com dois pedaços de pau. O índio ficava algemado em um deles, sentado, com um pé espremido no meio da forquilha. Isso quem fazia era o chefe do posto do SPI, uma instituição criada com o ideal de “civilizar” o índio.

Pelo que você tem visto e ouvido nas viagens pela CNV, como está a situação dos povos indígenas hoje, comparada à do período da ditadura?



Muito parecida. Acho estranho um país como o nosso ter como principal ponta de crescimento a agricultura, não a de alimentos, mas a de commodities, como soja, cana e milho. É nos estados dominados pelo agronegócio que os índios ainda hoje sofrem ameaças, despejos e assassinatos. O oeste do Paraná e o Mato Grosso do Sul, em especial, são regiões muito atingidas por isso. Morrem caciques, lideranças locais, e os crimes nunca são apurados, ninguém é condenado. Cria-se um clima de medo nessas regiões. Acabei de voltar de Guaíra, no norte do Paraná, região de muito milho, onde é evidente a imagem ruim que se tem dos índios. Fomos muito bem recebidos no hotel, mas quando voltamos da audiência com objetos indígenas e com a pintura que os índios fizeram em nosso rosto como sinal de amizade, o tratamento mudou completamente. Naquela região, os índios não têm mais espaço para caçar, perderam acesso à água, dependem de cestas básicas, muitas vezes passam fome. A situação deles é tão grave que você pode pensar: por que eles não “desistem” de ser índios? Mas é uma questão de pertencimento cultural. Pense nos brasileiros exilados durante a ditadura: tudo que eles queriam era voltar. O índio não pode ser um exilado dentro do Brasil. É assim que se produz a condição que alimenta o preconceito.

Fonte: O Globo

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Hidrelétrica Santo Antônio do Jari: energia para produzir celulose no coração da Amazônia

A barragem da UHE Santo Antônio do Jari rompeu hoje (29) no município de Laranjal do Jari, no Amapá. Há vítimas e ainda não se tem ideia das implicações ambientais do acidente. É importante conhecer a história desse projeto desde sua concepção. Publiquei o artigo em 2008 e o reproduzo agora, atualizado. Estudos da Aneel projetam a construção de mais três hidrelétricas no rio Jari. 

Foto aérea da fábrica de celulose às margens do Jari (Wikipédia) - Fonte: Observatório Ambiental

Rio Jari: energia para celulose

Por Telma Monteiro


Jari é uma variação da palavra indígena airi. Significa "rio da castanha". O rio Jari é afluente na margem esquerda do rio Amazonas e limita os estados do Pará e Amapá.

O município de Laranjal do Jari (Amapá) tem aproximadamente 37 mil habitantes às margens do rio e que vivem em palafitas de até dois andares. Laranjal do Jari já foi a campeã em prostituição infantil. A hidrelétrica no rio Jari acabaria com a exuberante Cachoeira de Santo Antônio e só beneficiaria a empresa Jari Celulose e sua indústria poluente de papel. 

Famílias extrativistas da Reserva do Cajari insistem que é possível um desenvolvimento sustentado utilizando a floresta de maneira equilibrada e sem necessidade de se construir uma hidrelétrica no rio Jari.

A Jari Celulose ocupa 1.734.606 hectares distribuídos em terras nos Estados do Pará (55%) e do Amapá (45%), cortadas pelo rio Jari, que faz a divisa entre os dois estados. Na região do Jari vivem hoje cerca de 100.000 habitantes, distribuídos pelas cidades de Monte Dourado (Pará), Laranjal do Jari (Amapá), Vitória do Jari (Amapá) e Almeirim (Pará).

A hidrelétrica Santo Antônio do Jari, da Jari Celulose, do Grupo Orsa, foi licenciada pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA) e aprovada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O projeto prevê uma usina a fio d’água e, curiosamente, “sem alagamento da área”. Qual é o milagre? Ainda, segundo a empresa, “não trará danos ao meio ambiente, nem irá alterar a estrutura atual da Cachoeira de Santo Antônio” e “seu funcionamento irá evitar futuras pressões sobre a floresta nativa”.

O engenheiro Marcos Drago, da Eletronorte, em entrevista ao Diário do Amapá, em 26 de Março de 2008, alertou para o fato de que a geração prevista para a Hidrelétrica Santo Antônio do Jarí não poderia ser mantida o ano todo, pois no período da estiagem não haveria vazão suficiente para funcionar as turbinas e seria preciso acionar a termelétrica ou mesmo buscar energia da usina de Tucuruí. Mesmo assim, a Eletronorte aceitou ser parceira da Jari Celulose nesse empreendimento. Nós já vimos esse filme em Belo Monte. A história se repete.

O projeto da Hidrelétrica Santo Antônio do Jari terá potência instalada de 100 MW e a localização nos municípios de Almeirim e Mazagão para aproveitar o local das quedas d'água da Cachoeira de Santo Antônio, um dos 15 sítios da região tombados pelo patrimônio histórico.

O Senador José Sarney anunciou, em Dezembro de 2007, em Macapá, Amapá, que o Governo Federal tinha autorizado (?) a concessão para construção da Hidrelétrica Santo Antônio do Jari, no rio Jari. O senador eleito pelo Amapá já havia comunicado, em Junho do mesmo ano, que “nenhum entrave mais existe para a consolidação do consórcio que irá construir no rio Jari a hidrelétrica de Santo Antônio, uma usina prevista para gerar algo em torno de 100 megawatts de energia elétrica, mas que novos estudos projetam algo bem perto dos 200 megawatts”.

O “rio” de dinheiro público

Segundo a revista Isto É de julho de 2002, “...A agonia da Jari se prolongou até 2000, quando a Fundação Orsa abocanhou parte da empresa que fabrica celulose, por simbólico R$ 1 e assumiu uma dívida de US$ 415 milhões.” Dessa dívida considerada impagável pelos “compradores”, US$ 100 milhões são devidos ao BNDES e US$ 50 milhões ao Banco do Brasil. Na época, a Jari Celulose recusou investir US$ 32 milhões para impedir que a fumaça preta e o mal cheiro contaminasse o ar da região. A prioridade da empresa seria a construção da hidrelétrica para aumentar sua competitividade.

A Jari Celulose nasceu da frustrada tentativa do excêntrico empresário e bilionário americano Daniel Keith Ludwig que, na década de 70, queria substituir a mata nativa por florestas de eucaliptos e alimentar o mercado mundial de celulose com a produção no Jari e a destruição da Amazônia. Enfiou US$ 1,3 bilhão em 16 mil quilômetros da mata. Destruindo-a.

Mais de US$ 200 milhões de dinheiro público dos contribuintes brasileiros foram enfiados para cobrir as dívidas deixadas por Ludwig e o Banco do Brasil acabou comprando mais US$ 180 milhões em ações preferenciais.

O ataque silencioso contra o rio Jari 

Como disse o Senador José Sarney, nada poderia atrapalhar a construção da Hidrelétrica Santo Antônio do Jari, sobre a tombada Cachoeira de Santo Antônio. Então, em 21 de Julho, agora, de 2008, o Ibama emitiu o documento de vistoria técnica na região do Jari onde pretendem fazer a hidrelétrica. No dia 27 de Julho saiu o Termo de Referência com a “liturgia” para a elaboração do EIA/RIMA que confirma o processo de licenciamento e a aprovação dos estudos de viabilidade pela Annel. E, a sopesar as últimas notícias, o licenciamento deverá transcorrer célere enquanto os ambientalistas tentam evitar o desastre no rio Madeira.

O reservatório do projeto da Hidrelétrica Santo Antônio do Jari vai afetar diretamente os municípios de Laranjal do Jari (Amapá) e Almerim (Pará). A área foi classificada pelos técnicos que realizaram a vistoria, como de excepcional beleza cênica, fonte de abastecimento de água potável da região e área de preservação permanente. Não há menção das terras indígenas na bacia do rio Jaru.

Mais uma das mais belas cachoeiras do Brasil, a Cachoeira Santo Antônio do rio Jari, está sendo exterminada. A luta continua.