quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

PA: sem consulta prévia e avaliação ambiental integrada, usina Jatobá, no rio Tapajós, deve parar




Complexo hidrelétrico projetado para o rio Tapajós. Imagem no sítio da ABIAPE/Valor

Mais uma barragem planejada para o rio Tapajós tem o licenciamento conduzido sem cumprir a legislação. Procuradores da República em Santarém notificaram União, Ibama, Aneel, Eletrobras e Eletronorte
O Ministério Público Federal no Pará (MPF/PA) deu prazo de 60 dias para que o governo federal manifeste-se sobre as irregularidades no licenciamento ambiental da usina hidrelétrica de Jatobá, uma das barragens previstas para o rio Tapajós, no oeste do Estado. Assim como em Belo Monte, São Luiz do Tapajós e as usinas do rio Teles Pires, Jatobá está sendo licenciada sem cumprimento da legislação brasileira. Mais uma vez, o governo conduz o licenciamento ignorando a obrigação da consulta prévia prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Mais uma vez, ao planejar uma série de barragens em um dos principais rios da Amazônia, o governo ignora a obrigação de fazer as Avaliações Ambientais Integrada e Estratégica, previstas em vários diplomas da legislação ambiental.
O MPF/PA enviou uma lista dos diplomas legais que devem ser observados e recomendou a suspensão imediata do licenciamento da usina de Jatobá, até que sejam realizadas a consulta prévia, livre e informada às populações indígenas e tradicionais afetadas e as avaliações ambientais. O documento, assinado pelos procuradores da República em Santarém Luiz Hernandes, Carlos Raddatz e Ticiana Sales Nogueira, foi enviado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), à Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobras) e à Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Eletronorte).
A legislação ambiental brasileira foi construída a partir dos dispositivos da Constituição Federal que instituem a proteção do meio ambiente como princípio que deve nortear todas as relações sociais, inclusive as econômicas e, em especial, aquelas voltadas à exploração de recursos naturais (artigo 170). A Constituição estabelece, no artigo 225, que é dever do poder público e da coletividade defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.
Para concretizar esses dispositivos, a Política Nacional do Meio Ambiente (lei nº 6.938/81) e a Política Nacional de Biodiversidade (decreto nº 4339/2001) previram a realização de avaliação ambiental que deve considerar o acúmulo e a sinergia de impactos para empreendimentos potencialmente poluidores, como é o caso das cinco barragens previstas no Tapajós. Os instrumentos são a Avaliação Ambiental Integrada (AAI) e a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), que deveriam preceder os estudos de impactos ambientais isolados de cada usina hidrelétrica prevista e considerar os impactos de todos os projetos na bacia hidrográfica.
O MPF/PA já obteve liminar para obrigar o governo a realizar a AAI e a AAE antes do licenciamento da usina de São Luiz do Tapajós, mas até agora a decisão não foi cumprida e os estudos de impactos ambientais continuam sendo tocados isoladamente para esta usina. No caso da usina de Jatobá, a mesma situação se repete: sem avaliar o impacto cumulativo e sinérgico das cinco barragens previstas, os estudos isolados estão sendo realizados.
“Uma vez implantados os empreendimentos, ainda que sejam considerados impactos insuportáveis pelas populações de peixes afetadas, não se reverterá o fato consumado”, diz o MPF/PA na recomendação. “A ausência de estudos detalhados sobre os impactos que todas as hidrelétricas podem gerar a partir de seu funcionamento conjunto implica a incerteza quanto às consequências ambientais e sociais da implantação de tais empreendimentos, ainda mais se considerarmos que tais consequências poderão ser irreversíveis”, acrescenta.
Consulta prévia – Nenhuma usina hidrelétrica construída pelo governo brasileiro em tempos democráticos na Amazônia respeitou a Convenção 169 da OIT, que prevê o respeito à autodeterminação dos povos indígenas e tradicionais diante de projetos de extração de recursos naturais da sociedade envolvente. Um dos instrumentos dessa autodeterminação é o direito da consulta prévia, livre e informada, por meio do qual os povos tradicionais devem ser consultados sobre a realização dos projetos que lhes afetem.
No caso da usina de Belo Monte, no rio Xingu, já chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) o processo em que o MPF/PA questiona a ausência das consultas. São Luiz do Tapajós, uma das cinco previstas para o rio que nasce no rio Teles Pires, no Mato Grosso e deságua no rio Amazonas, no Pará, também foi decidida, planejada e está sendo licenciada sem que a consulta prévia aos povos afetados tenha sido realizada. A usina de Jatobá, portanto, será a terceira em território paraense que o governo federal tenta iniciar sem respeitar o direito da consulta. A não ser que acate a recomendação enviada nesta sexta-feira, 24 de janeiro, e suspenda o licenciamento para cumprir a legislação aplicável.


Fonte: Ministério Público Federal no Pará

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Uma nova ameaça ao Tapajós


Luana Lila

Desmatamento na região de Itaituba (© Greenpeace/Marizilda Cruppe)

Nove terminais fluviais estão previstos no rio Tapajós, no Oeste do Pará, para o escoamento de grãos produzidos no Centro-Oeste do Brasil. Mas, segundo David Leal, secretário da Indústria, Comércio e Mineração do Pará, afirmou em reportagem recente do jornal Valor Econômico, não há nada – nem  mesmo um plano de ação – previsto para mitigar os impactos ambientais e sociais que deverão ser causados pelas construções.
A criação de uma nova rota para escoar a produção agrícola da região será plenamente viabilizada após a conclusão do asfaltamento da BR-163, cuja área de influência foi uma das mais impactadas pelo aumento de 28% do desmatamento na Amazônia, divulgado no último balanço anual do governo.
“Esse empreendimento é parte de uma onda de projetos de infraestrutura previstos na Amazônia. O problema é que eles são implementados sem planejamento e cuidado com os impactos sócio-ambientais que causam. Os terminais, por exemplo, provavelmente vão acabar saindo mesmo sem o plano de ação, o que é um absurdo. Como o município vai lidar com o crescimento populacional causado pelas obras, ou o aumento do desmatamento que deverá ser provocado pela especulação de terras?” pergunta Romulo Batista, da Campanha Amazônia do Greenpeace.
Os terminais serão construídos em Miritituba, distrito de Itaituba, município que tem 73% da área territorial ainda preservada, de acordo com dados da Secretaria de Meio Ambiente local. A nova rota levará a carga de grãos - principalmente a soja - de caminhão pela BR-163 de Mato Grosso até Miritituba e de lá seguirá pelo rio Tapajós rumo a diferentes portos da região, e depois para o exterior. 
O investimento total do empreendimento deve ser de mais de 1 bilhão de reais. No ano passado, a Atap, Associação dos Terminais Privados do Rio Tapajós, que representa as empresas interessadas, entre elas a Bunge e a Cargill, fechou um acordo com a Prefeitura de Itaituba para pagar R$ 12 milhões como compensação social.  

“Sem o plano de ação, esse dinheiro causará poucos benefícios... Faltam planejamento e fiscalização do Estado na realização de obras que mudarão completamente o perfil dos municípios afetados. Trata-se da reprodução de um modelo de desenvolvimento predador, que causa o aumento do desmatamento na Amazônia”, afirma Batista.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014


O BNDES na Amazônia


Durante três meses, os repórteres da Pública, em parceria com o site O Eco, investigaram os investimentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em obras de infraestrutura na região amazônica.

BNDES 'sonega' dados a órgãos de fiscalização


Documentos revelam meios usados pelo banco para \"recusar\" informações sobre financiamentos, empréstimos e operações subsidiadas

RICARDO BRITO E RENATA VERÍSSIMO - Agencia Estado

Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) aberta para fiscalizar o maior financiamento da história do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a construção da Usina de Belo Monte, pouco avançou no mapeamento dos recursos públicos, mas revelou a narrativa da blindagem da instituição aos órgãos de controle.
Documentos do tribunal consultados pelo Estado e levantamentos no Ministério Público revelam os meios usados pelo banco, maior instituição de fomento da América Latina, para "recusar" informações sobre financiamentos, empréstimos e operações subsidiadas.
Para o TCU, Controladoria Geral da União (CGU) e o Ministério Público Federal (MPF), o banco - que recebeu mais de R$ 400 bilhões em dinheiro do Tesouro Nacional desde o início da crise global- não repassa dados suficientes para aferir suas operações. Entre os expedientes usados, o BNDES cita sigilo bancário e se vale da indecisão da Advocacia-Geral da União (AGU) para arbitrar disputas do banco com a CGU.
O caso mais recente de blindagem de dados envolve a construção da hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira (PA), cujo consórcio Norte Energia S/A vai receber R$ 22,5 bilhões do banco para levantar a usina. No meio do ano passado, o TCU abriu uma auditoria para verificar a regularidade do uso de recursos do banco na terceira maior hidrelétrica do mundo, no Rio Xingu, e em outras duas obras de concessionárias de serviços públicos - uma linha de transmissão para distribuir energia no Centro-Oeste e um terminal portuário em Salvador (BA).
Começava ali uma história de resistência, segundo autoridades da Corte. Desde 30 de agosto, técnicos e ministros do TCU reuniram-se cinco vezes com integrantes do banco para acessar as informações a fim de embasar a auditoria.
O segundo encontro, em 17 de setembro, ocorreu na sede do BNDES no Rio, com a participação de Luciano Coutinho, presidente do banco, e Augusto Nardes, presidente da Corte. O quarto encontro, um mês depois em Brasília, novamente com a presença do presidente do BNDES e o relator do processo, ministro Augusto Sherman.
Não houve grandes avanços. Apesar de o banco ter encaminhado documentos com o "menor número de tarjas e com exclusões mais seletivas", a papelada ainda estava incompleta. No caso de Belo Monte, segundo o TCU, não foram apresentadas informações básicas como relatórios de análise, fontes de publicações e sites especializados que serviram de base para o orçamento e a análise da capacidade de pagamento do consórcio.
Diante da blindagem, ministros do TCU cogitaram aplicar uma multa a Luciano Coutinho. Na última manifestação do tribunal no caso, em dezembro, venceu uma retaliação intermediária. A Corte derrubou o sigilo da auditoria, expondo as tentativas frustradas de acesso a informações. Também congelou o caso até que as respostas do banco cheguem completas.

Resistência

O ministro do TCU José Jorge, que tem participado da análise do caso, resumiu assim a situação. "Ninguém gosta de ser fiscalizado", afirmou ele, ao destacar que os bancos públicos, em geral, resistem a repassar dados de financiamentos sob a alegação do sigilo bancário ao tribunal.
O ministro ironiza a contradição pela qual a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei de Acesso à Informação, mas o BNDES restringe acesso a informações. "A lei vale é para os outros." No caso do Ministério Público Federal, uma investigação foi aberta em 2011 para verificar a atuação do BNDES, por meio do apoio financeiro a fusões ou outras reorganizações societárias. O MPF pretendia compreender os critérios usados pelo banco para concessões de financiamentos em diferentes áreas de atuação.
A Procuradoria da República enviou ofício ao BNDES para saber, entre outros dados, quais os dez maiores valores de projetos de financiamentos aprovados. O banco recusou-se a responder os questionamentos do MPF por escrito, alegando que os atos referentes à sua gestão bancária, exceto em casos previstos em lei, devem ser mantidos privados.
A procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira moveu uma ação civil pública na Justiça Federal em Brasília para tornar públicas, com base na Lei de Acesso à Informação, todas as atividades de financiamento e apoio a programas, projetos, obras e serviços de entes públicos e privados, que envolvam recursos públicos nos últimos 10 anos, sob pena de multa. Em maio passado, a Justiça rejeitou pedido de liminar. Falta, ainda, julgar o mérito.

''No limite da lei''

A assessoria de imprensa do BNDES afirmou em nota que a instituição tem atendido, "dentro dos limites estabelecidos pela lei", todas as solicitações de informações realizadas pelos órgãos de controle. "Todos foram plenamente atendidos, salvo quando havia algum impedimento legal (quando os pedidos se referiam à disponibilização de dados privados de clientes, por exemplo)", anotou.

O órgão preferiu não responder pontualmente a uma série de questionamentos do Estado a respeito de fiscalizações do Tribunal de Contas da União, Controladoria-Geral da União e Ministério Público Federal. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo. 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Violações dos direitos humanos, em 2013 e 2014 (1)

Por Telma Monteiro, para o Correio da Cidadania


Para fugir um pouco do formato tradicional de retrospectivas e perspectivas, optei por abordar as violações dos direitos humanos. Selecionei fatos que engolfaram a Amazônia, como os projetos hidrelétricos em processo de licenciamento e em construção; plantas de mineração; tramitação de projetos de lei no Congresso Nacional; o vai e vem das ações civis públicas no judiciário; a mobilização indígena. São temas que continuarão e recrudescerão em 2014.

Como os acontecimentos se sucederam numa cornucópia de violações, optei por dividir em duas partes a análise, para não correr o risco de cansar os leitores.

“Justiça já” será o mote do próximo ano e é fácil visualizar de antemão o acirramento de conflitos e de guerras jurídicas entre Ministério Público e governo. Mais projetos de mineração e estudos de aproveitamentos de bacias hidrográficas estão sendo planejados nos rios amazônicos do Brasil e dos países vizinhos. Mas os questionamentos das ilegalidades que cercam todo esse aparato do governo federal têm sido cada vez mais incisivos por parte do Ministério Público. Nunca se viu, desde a Constituição de 1988, tantas ações civis públicas, num único ano, com a participação maciça de procuradores na busca incansável de justiça para o meio ambiente e as minorias.
Na outra ponta, as lideranças indígenas estão cada vez mais atualizadas e informadas sobre licenciamento ambiental e acompanham as tramitações de projetos de lei que, se aprovados, podem prejudicar os seus direitos. Os indígenas exigem seu lugar nos processos decisórios que podem alterar para sempre suas vidas, sua cultura e seu passado.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) já não tem estrutura para cumprir seu papel na defesa dos direitos indígenas frente a tantos projetos de hidrelétricas, hidrovias, estradas, linhas de transmissão, plantas minerárias. A Funai nunca esteve tão vulnerável às pressões políticas como nas decisões que tomou em 2013. Decisões e pareceres técnicos que defendem a necessidade de consulta aos indígenas e que foram desconsiderados em nome de apagões inexistentes, de projetos com custos atraentes de impactos socioambientais reduzidos ou de elevado interesse para o estado e ou setor elétrico.

Foi sob essa pressão política que a Funai mudou covardemente sua decisão sobre o inaceitável Estudo do Componente Indígena (ECI) da UHE São Manoel, apresentado pelo Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Foi assinado por Maria Augusta Assirati, presidente da Funai, o ofício de última hora, ao Ibama, que deu por sanadas as questões pendentes do ECI. Mudanças de decisões a toque de caixa, que contrariam pareceres dos técnicos, são prática recorrente, também, na diretoria de licenciamento do Ibama. Em 2013, particularmente, foi acintoso.

Some-se a isso uma arma jurídica poderosa que está sendo usada pela Advocacia Geral da União (AGU): a Suspensão de Segurança (SS). A SS, em casos que comprovam a violação dos direitos humanos, que ouso chamar de “apagão de Justiça”, se transformou numa manobra corriqueira para derrubar todas as liminares favoráveis concedidas aos argumentos do Ministério Público, em decisões proferidas contra os projetos hidrelétricos.

Promessas de um governo mentiroso

Jamais tantos grupos indígenas estiveram em Brasília para protestar contra projetos hidrelétricos e as violações dos seus direitos. A bola da vez é o plano de construir uma sequência de empreendimentos na bacia hidrográfica do Tapajós, que ameaçam os direitos indígenas. Sentindo-se humilhados, traídos e ameaçados, os Munduruku deram o tom contra o governo durante todo o ano de 2013. Eles escreveram cartas, bradaram, viajaram de forma incansável e destemida, pedindo para serem ouvidos pelas autoridades e pela sociedade. Pararam Belo Monte duas vezes e mantiveram pesquisadores sob sua guarda na aldeia. O governo federal fez ouvidos moucos e promessas vãs e ainda mandou a Força Nacional e a polícia rodoviária federal para intimidá-los.

Diante de tantas reivindicações, o governo prometeu suspender o processo de licenciamento da UHE São Luiz do Tapajós, a maior planejada na bacia, até que os Munduruku fossem consultados. Foi só uma manobra para acalmar os ânimos. Não cumpriu. Marcou uma reunião com os índios na aldeia. Não foi. Prometeu retirar os pesquisadores das terras indígenas. Não retirou. Os estudos de campo para elaboração do EIA/RIMA (Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental) continuaram e os pesquisadores permaneceram na região com uma escolta da polícia.

Os Munduruku ficaram divididos e chegaram a sofrer baixas no movimento de resistência devido às táticas pouco ortodoxas empregadas por autoridades, para cooptar lideranças a favor dos projetos. É uma prática covarde de um governo disposto a tudo, até de fomentar discórdia entre os indígenas, para ver seus planos de crescimento e grandeza realizados.

Mas o recado dos índios é claro:


“Se o governo quiser diálogo com Munduruku tem que parar a Operação Tapajós e mandar tirar as forças armadas de nossas terras. Nós não somos bandidos, estamos nos sentindo traídos, humilhados e desrespeitados com tudo isso. O governo não precisa da polícia e da força nacional para dialogar com o povo Munduruku. Nós queremos diálogo, mas só falaremos com o governo depois que todos os caciques do alto, médio e baixo conversarem e tomarem sua decisão. É nosso último aviso. Se a Operação não parar, não vai ter mais diálogo com os Munduruku, vamos acionar os caciques e vai ter guerra".


Tapajós

Os projetos hidrelétricos no rio Tapajós foram, em 2013, causa constante de conflitos entre governo, ONGs, movimentos sociais e indígenas.

Apesar de alguma dissensão ocorrida durante o ano, os Munduruku permaneceram firmes na decisão de não aceitar construção de hidrelétricas em seu rio precioso. O governo, no entanto, confirmou que vai construí-las assim mesmo: com o apoio do agronegócio, comerciantes, grandes empresas nacionais e internacionais, empreiteiras e políticos, mas contra as comunidades tradicionais, os indígenas, as comunidades de pescadores, os madeireiros e a Natureza. Nas decisões, o que conta é o poder do dinheiro.

Para tentar enfiar as usinas do Tapajós goela abaixo da sociedade, as autoridades ligadas ao setor elétrico estão “patenteando” uma nova invenção chamada de “usina plataforma”, que será usada em áreas “desabitadas” de floresta que, dizem, foi inspirada em plataformas de petróleo em alto mar. O objetivo seria a redução dos impactos ambientais. Até agora é uma incógnita como a novidade permitiria a implantação de hidrelétricas no meio da floresta sem criar impactos em terras indígenas, em unidades de conservação e em comunidades tradicionais.

Recentemente, o secretário de Planejamento e Desenvolvimento do Ministério das Minas e Energia (MME), Altino Ventura Filho, em entrevista à Carta Capital, disse que a região onde serão construídas as usinas no rio Tapajós não é habitada. Para o secretário, indígenas em suas terras, comunidades tradicionais como a de Montanha e Mangabal e Pimental, nas margens do rio Tapajós, não são habitantes, ou gente, segundo seu critério.

Incansáveis, os Munduruku que habitam o alto e médio Tapajós, contrariando o que imagina o secretário, enviaram nove cartas ao governo pedindo o cancelamento dos projetos das hidrelétricas em rios que atravessam suas terras. Foi em vão. O Ibama deu autorização de abertura de picadas para as pesquisas em campo.

O ministro da Secretaria Geral da Presidência República, Gilberto Carvalho, também prometeu que os indígenas seriam consultados e que poderiam opinar sobre os projetos hidrelétricos na bacia do Tapajós. Até agora não cumpriu a promessa.

O Ministério Público Federal (MPF) chegou a recomendar ao Ibama, à Aneel, à Eletrobras e à Eletronorte a suspensão do processo de licenciamento ambiental das usinas Cachoeira dos Patos e Jatobá, planejadas para o rio Jamanxim, principal afluente do Tapajós.

Ainda em 2013, a diretoria da Associação Pusuru, organização pilar da resistência dos Munduruku, sofreu um golpe e foi destituída para dar lugar a representantes simpáticos às hidrelétricas e aliados do governo. Os Munduruku não aceitaram a diretoria cooptada. Em reunião na aldeia Restinga, caciques e lideranças Munduruku se organizaram em uma nova associação, a Da’uk, e reafirmaram que não querem mesmo as hidrelétricas e nem a presença de estranhos não autorizados em seu território.

No início de dezembro, os Munduruku ocuparam a sede da Advocacia Geral da União (AGU). Pediram a revogação da Portaria 303, a demarcação da Terra Indígena Munduruku no Médio Tapajós (aquela que não tem ninguém) e a manutenção da liminar que suspendeu o leilão da hidrelétrica de São Manoel, no rio Teles Pires. Não foram atendidos. A liminar foi cassada pela AGU com um novo pedido de Suspensão de Segurança. Era a data em que se comemorava o Dia Internacional dos Diretos Humanos.

É bom lembrar que não são apenas as hidrelétricas que ameaçam a bacia do Tapajós, as terras indígenas e a floresta. Outros monstros estão saindo do inferno e vão assombrar 2014. Um grande processo de ocupação já está ocorrendo na bacia hidrográfica do rio Tapajós, incluindo os seus principais formadores, os rios Teles Pires e Juruena.

Um Plano Hidroviário na Amazônia, que tem como parceiros técnicos do governo holandês, está mobilizando investidores para construção de terminais de armazenamento e de embarque. Grandes empresas de mineração e eletrointensivas aguardam os portos fluviais e hidrovias para ampliar sua capacidade de transporte de carga. Em 2013, novas rodovias que cortarão unidades de conservação e terras indígenas foram licitadas para integrar a futura malha hidroviária. Em 2014, começa a sangria dos produtos extraídos da exploração dos recursos naturais.

Leia na parte 2: Belo Monte, hidrelétricas Teles Pires e São Manoel, hidrelétricas do rio Madeira e os erros cometidos, mineração e PEC 215.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Nota Pública: Apoio à extrusão da Terra Indígena Awá-Guajá, no Maranhão

 Fonte: Cimi

Conforme informações divulgadas na grande imprensa, o Executivo Federal, cumprindo ordem judicial, iniciou o processo de desintrusão ou extrusão, ou seja, de retirada de todas as pessoas não índias que invadiram a Terra Indígena Awá-Guajá, localizada no norte do Estado do Maranhão. Essas ações se devem, apenas e tão somente, ao cumprimento do mandado constitucional do Art. 231 da Constituição que reconhece e garante aos índios “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Consequentemente, a defesa dos direitos do povo Awá-Guajá e da extrusão não se deve apenas ao fato de ser um povo ameaçado de extinção pela ação de invasores, especialmente madeireiros, mas porque é um direito garantido pela Constituição do Brasil.
O direito dos Awá-Guajá às terras que ocupam foi reafirmado por recente decisão da Justiça Federal do Maranhão, em processo que se arrasta há mais de doze anos. É obrigação do Estado, através da Fundação Nacional do Índio (Funai), retirar todos os não indígenas da TI Awá-Guajá.
Não se trata de um “expurgo” de pequenos agricultores de suas terras, abandonando-os à própria sorte, como vem afirmando a Senadora Katia Abreu e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Apesar de ocupar ilegalmente terras indígenas, no processo de extrusão está previsto que as famílias retiradas, elegíveis para programas de reforma agrária do Governo Federal, serão reassentadas pelo INCRA.
Também, muito diferente do que afirmou a presidente da CNA, usando de má fé para incitar pequenos agricultores contra os índios, as ações de retirada dos invasores da TI Marãiwatsédé, no Mato Grosso, em 2012, não jogou “1.800 famílias de pequenos agricultores familiares ao vento, ou melhor, à maior das intempéries”. Além de serem menos de mil famílias e apesar de terem invadido a área, influenciados por políticos e grandes fazendeiros, depois de decisão que a estabeleceu como Terra Indígena, no início dos anos 1990 (detalhes emhttp://maraiwatsede.wordpress.com), às famílias elegíveis para os programas de reforma agrária foram oferecidos lotes em assentamento no município de Alto da Boa Vista. No processo de retirada, muitas não aceitaram a oferta, influenciadas por lideranças políticas que incitaram a população contra os direitos constitucionais dos índios Xavante.
Este mesmo tipo de incitamento vem ocorrendo por ocasião da retirada de invasores não índios da TI Awá-Guará, inclusive por meio da organização de acampamento em frente à base de operações no município de São João do Caru para dificultar o cumprimento da ordem judicial de extrusão. Manifestações de opiniões são um direito constitucional, mas desinformar e incitar pessoas à desobediência é ilegal e ilegítimo.
Reafirmamos a luta em defesa dos direitos humanos, especialmente dos direitos indígenas, que só serão garantidos a partir do acesso e permanência em suas terras. Consequentemente, reafirmamos nosso compromisso e apoio incondicionais à desintrusão da Terra Indígena Awá-Guajá, obrigação do Estado brasileiro e fundamental para a autodeterminação e manutenção do modo de vida de “um dos últimos povos nômades da América”.

- Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
- Conselho de Missão entre Povos Indígenas (Comin)
- Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic)
- Greenpeace
- Instituto Socioambiental (ISA)
- Operação Amazônia Nativa (OPAN)
- Plataforma Dhesca Brasil
- Relatoria do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação
- Terra de Direitos
- Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Índios vão reabrir pedágios no Amazonas. Bispo alerta: "Brasília tem de acordar"


08 de janeiro de 2014

Índios de aldeias no sul do Amazonas informaram ao Exército que vão reabrir em 1.º de fevereiro os pedágios na Transamazônica (BR-320), em Humaitá, a 675 km de Manaus. As lideranças decidiram retomar a cobrança apesar da ameaça de um novo ataque dos moradores da cidade que, em 26 de dezembro, atearam fogo aos postos instalados na reserva Terra Indígena Tenharim Marmelos. O conflito ocorreu após o desaparecimento de três homens na reserva, em 16 de dezembro.
A reportagem é de José Maria Tomazela e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 08-01-2014.
A decisão de reabrir os pedágios - ponto de conflito com a população local - foi anunciada anteontem por lideranças indígenas na aldeia dos tenharins ao comandante militar da Amazônia, Eduardo Villas Bôas. O general havia pedido o fim do pedágio em nome da paz na região.
Além de terem se negado a atender ao apelo, os caciques prometeram explodir as pontes e isolar a reserva caso haja outro ataque dos moradores. Eles foram informados de que estaria sendo preparada uma nova ação para a próxima terça-feira.
"O povo tenharim já decretou que o pedágio vai continuar, independentemente dos protestos de algumas pessoas. Demos um intervalo para não atrapalhar a força-tarefa (que atua na busca dos três homens desaparecidos)", anunciou o cacique Aurélio Tenharim, depois de expor que o pedágio é uma compensação pela construção da Transamazônica na terra indígena. Segundo ele, a construção da rodovia teria causado mortes de índios. "Esperamos quatro anos para negociar e nenhum governo apareceu."
Villas Bôas, acompanhado do general Ubiratan Poty, comandante da 17.ª Brigada de Porto Velho, do corregedor do Ministério Público Estadual José Roque Marques e dos comandos da Força Nacional de Segurança e Polícia Rodoviária Federal, argumentou que a cobrança era ilegal e acirrava os ânimos.
Os indígenas disseram que ilegal era a atividade dos "flanelinhas" nas cidades e que o pedágio é a principal fonte de renda das aldeias. "Não podemos caçar, plantar, nem cortar pau para fazer artesanato, pois o Ibama não deixa", afirmou Zelito Tenharim. Ele questionou a ausência de representantes do governo. "O general está aqui, mas cadê o Executivo? A construção de uma usina vai inundar parte da reserva, mas o projeto não foi discutido com os povos. Nós vamos cobrar por isso."
Os caciques das etnias tenharim e jiajoy prometeram colaborar com as investigações sobre o desaparecimento de três homens, no trecho da Transamazônica que corta a reserva. O episódio causou uma onda de revolta em Humaitá, no Natal, em que uma multidão incendiou a sede da Fundação Nacional do Índio (Funai) e outras bases indígenas na cidade, além de veículos e um barco usados no atendimento aos indígenas. As famílias acusam os índios, que permanecem isolados na reserva, mas eles negam.
Em documento entregue aos militares, os oito líderes pediram segurança do Exército nos limites da reserva e aos índios que estudam e trabalham na cidade. Pediram ainda um plano emergencial para atendimento na saúde, alimentos e uma reunião com o governo em Brasília.
Ontem, o general se reuniu com o prefeito de Humaitá, José Cidinei Lobo do Nascimento (PMDB), e lideranças locais para discutir a crise na região. Do bispo d. Francisco Merkel ouviu um alerta: "Outros corpos podem surgir e a questão não pode ser resolvida ao nível local. Brasília tem de acordar".
"Temos certeza de que nossos maridos foram mortos e queremos acabar com essa angústia. Tenho vergonha de ser brasileira porque, em outro país, um crime desses é cadeira elétrica", disse Erisneia Azevedo, mulher do professor Stef Pinheiro de Souza, um dos desaparecidos - os outros são o comerciante Luciano Ferreira Freire e o técnico Aldeney Ribeiro Salvador.
'Tragédia anunciada'
O general disse que as investigações da Polícia Federal estão no final e a conclusão deve ser anunciada nos próximos dias. Segundo ele, as provas devem esclarecer o desaparecimento e, se houve crime, os culpados serão punidos. Alertado pelo advogado das famílias, Carlos Terrinha, de que a cobrança do pedágio será uma "tragédia anunciada com derramamento de sangue", ele disse que a Força Nacional, a Polícia Rodoviária Federal e a Funai vão tentar demover os índios da cobrança.
As forças permanecem na região até o fim do conflito.

Vozes do Xingu - Xikrin-Kayapó




Vozes do Xingu é um projeto que pretende contar as histórias das pessoas afetadas pela hidrelétrica de Belo Monte que esta sendo construída no coração na Amazônia Brasileira. Esta é a história do povo Xikrin-Kayapó da comunidade Poti-Kro.

Mukuka Xikrin, Seu Povo, Belo Monte e Uma Guerra de Mentiras


07 Janeiro 2014

Eu conheci o Mukuka Xirin pela primeira vez em fevereiro de 2012. Naquela época ele era estudante e tinha 23 anos. Mukuka era uma pessoa “entendida das coisas”; porém muito calado. Ele não era um líder mas possuía a força de um, escondido por detrás do seu humilde olhar. Ele me levou para visitar 7 das 8 aldeias dos povos Xikrin, localizado no rio Bacajá, afluente do rio Xingu. 

Dormimos na aldeia Poti-Krô. Naquela época, o Mukuka já tinha conhecimento sobre os impactos que a Hidrelétrica de Belo Monte causaria na sua comunidade mas ele não sabia o significado que esse projeto teria na sua vida.


Alguns meses depois, Mukuka virou alvo, por posicionar-se firme contra Belo Monte. Ele foi ameaçado e hostilizado. Depois disso, ele se isolou por um tempo para proteger a integridade física sua e de sua família. Um ano depois, eu voltei para a comunidade Poti-krô, o mesmo local onde nos encontramos anteriormente. A força e a humildade ainda estavam ali; eu podia vê-las através de seus olhos; mas Mukuka já não queria mais lutar, ele queria apenas encontrar uma maneira de ajudar a sua comunidade a sobreviver.

Nós organizamos reuniões na sua comunidade e ouvimos o que eles tinham para dizer. Antes da reunião começar, os indígenas pediram desculpas por não estarem pintados e vestidos de acordo com a sua cultura. Até isso, a Hidrelétrica de Belo Monte está destruindo na comunidade. Tukuraré, o Conselheiro de Saúde local, conversou conosco mas pediu para não ser gravado.

"O governo disse que Belo Monte trará desenvolvimento para o país. Eles disseram que iriam consultar os povos indígenas porque as construções iriam nos afetar. Mas a consulta foi como um passarinho que voa de um lado ao outro. A conversa foi muito rápida. Para que o povo indígena entenda algo você tem que repetir muitas vezes."(...) Ele continuou: “o [governo] se aproveitou dessa nossa fraqueza que é a ingenuidade e falta de entendimento e apresentou o plano emergencial oferecendo-nos “migalhas”... A FUNAI poderia ter trabalhado para trazer coisas que poderiam realmente ajudar as nossas aldeias mas isso nunca aconteceu. Eles construíram algumas casas de madeira e deram alguns barcos dizendo que estavam fazendo o seu “melhor”. Mas as coisas que eles deram aos indígenas apenas causou problemas, intrigas, divisões e dores de cabeça.”

As pessoas da comunidade Poti-Krô sabem que a hidrelétrica de Belo Monte também afeta outros povos que dependem do Rio Xingu e dos seus afluentes. Eles falaram que “a construção de Belo Monte está gerando tráfico humano, crime e prostituição e  consequentemente muita  tristeza” para eles. Quando perguntado se existia alguma chance de que a barragem poderia trazer benefícios, Tukuraré respondeu: "não, eu não acho que é possível, porque o rio é a nossa estrada. O governo tem aviões. Como eles vão trabalhar sem aviões? O mesmo acontece conosco. Sem a nossa estrada ficamos encurralados.... Estou muito triste com essa situação. Eles estão brincando com as nossas vidas.”

Dentro da oca, a maioria das pessoas eram homens e haviam poucas mulheres segurando bebês em seus braços. Naquele momento, percebi que essa batalha era mais difícil de ver e entender do que uma guerra de fato. O isolamento e a falta de comunicação criou uma distância entre o mundo Xikrin e o meu mundo. Eu não era a única pessoa que sentia aquilo. Tukuraré parecia estar lendo meus pensamentos: "A pior guerra é a guerra de palavras porque você não vê realmente o sofrimento das pessoas pois não existem bombas e mortes. É uma guerra de mentiras contra os nosso direitos. É uma guerra através das palavras", ele finalizou. Tukuraré estava certo, a guerra de mentiras  estava matando lentamente essas pessoas.

A conversa seguiu por algumas horas. Até então, o Mukuka estava apenas traduzindo e guardando seus pensamentos para si mesmo. Já o Tukuraré , parecia expressar a a voz do povo do Xikrin . Ele pediu precisamente para expressar suas palavras de forma exata.

"Hoje eu ouvi alguns indígenas dizendo, e agora? Quem poderá nos ajudar? Com quem podemos conversar?’ [Porque falar com os funcionários do governo não adianta]. Se nós falamos com a FUNAI, ela passa a “bola” para a Norte Energia que passa a “bola” para o governo e por aí vai. A mensagem dá voltas e ninguém se responsabiliza por nada.” Então, em reconhecimento a nossa presença ele disse “a melhor coisa é fazer o que vocês fazem, porque vocês ajudam a gente a entender o que esta acontecendo, e consequentemente ao entender podemos agir" 

Tukuraré também se manifestou sobre a situação atual da aldeia: "As duas coisas mais importantes são saúde e educação. Com educação podemos escolher o que é melhor para a gente. O governo é responsável por fornecer saúde e educação. O pior sistema de saúde no Brasil é o das comunidades indígenas.  Quanto `a educação, se você perguntar para as pessoas daqui, você vai ver que ninguém passou da quarta série. Nosso professor acabou de deixar a escola em outubro. Agora estão dizendo que não vamos ter professor durante o resto do ano. Como podemos lutar pelos nosso direitos se não temos educação? "

Ele estava certo. A infraestrutura da aldeia Poti-Krô é melhor em comparação com as outras 7 aldeias que eu visitei, mesmo assim a estrutura é  precária. Algumas aldeias ainda não tem nem poços. As crianças estão ficando doentes porque a água esta suja devido a construção da barragem. "O governo é irresponsável”, disse Tukuraré. Ele falou: "a minha mensagem é para que eles respeitarem os povos indígenas e respeitarem a natureza. Porque essa terra pertencia aos nossos antepassados e nós dependemos da natureza para poder sobreviver. "

Já estava tarde e escuro, decidimos continuar a nossa conversa no dia seguinte. Enquanto nos organizávamos para dormir, o Mukuka veio e sentou conosco para conversar. Nós perguntamos sobre os impactos que a hidrelétrica causou na região. Ele disse: "no ano passado, por causa da construção, notamos lama [verde] na água, e os peixes começaram a morrer." Tudo isso aconteceu pela primeira vez em outubro.

"Nós vimos muitos peixes morrerem", disse Mukuka, e continuou: "Ninguém da Norte Energia explicou o que estava acontecendo. Começamos a perceber esse tipo de coisa." Então perguntamos se alguém da companhia poderia explicar o que estava acontecendo e novamente eles falaram que eles só poderiam explicar através de uma análise, e ninguém veio explicar absolutamente nada ou falar sobre alguma compensação.

Mukuka disse que a empresa Norte Energia criou uma divisão entre os grupos indígenas, por isso eles pararam de lutar contra a construção da hidrelétrica. Ele disse que os grupos da região querem seguir vivendo sem criar mais conflitos entre eles. Mukuka disse que os grupos indígenas ainda se comunicam mas não como antes. Ele disse que agora eles já não fazem mais seus rituais de celebração.


Quando questionado sobre os planos para o futuro, ele respondeu tristemente: "Eu não sei, não há nada planejado para o futuro. Se não existir uma estrada vamos ficar presos aqui. A empresa tem uma plano para construir uma estrada mas nunca a fizeram. Se a situação ficar muito difícil vamos ter que nos mudar daqui. "

Nós perguntamos como ele se sente em relação à hidrelétrica de Belo Monte. "Sinto raiva por dentro e também fico muito triste. A maioria das pessoas se sentem assim. Também estamos sem entender o que esta acontecendo. As coisas não estão claras, e eles usam palavras complexas para explicar [a situação]”, disse ele. Porém Mukuka também tem esperança em relação ao futuro. Ele disse que gostaria de ver as crianças vivendo no mundo onde ele vivia, com uma cultura e uma língua própria. Quando questionado sobre Belo Monte, ele completou: "Eu acho que um dia a construção da hidrelétrica vai parar.  Nós acreditamos em Deus. "

O dia já tinha terminado. Eu fui dormir e não conseguia parar de pensar o que seria do futuro do povo Xikrin. Hoje existem cerca de 1.300 pessoas vivendo nessas 8 aldeias. Eles estão beneficiários de quase todas as ações que o Ministério Público fez em defesa do Xingu, seus povos e contra as irregularidades no processo de licença e construção. Eles também são beneficiários de uma ação específica  contra o BNDES, IBAMA e Norte Energia decorrente da falta de compensação ao seu povo que são impactados por Belo Monte.

No dia seguinte fomos à floresta colher mandioca e participamos de uma reunião com as mulheres. Depois passamos um longas horas vendo as crianças que brincavam no rio. Bacajá significa “o mesmo que corre no nosso sangue”, disse Mukuka. Eu podia ver isso... E vendo me entristecia ao dar-me conta de que o rio esta morrendo e  com ele também os sonhos, cultura e a vida deste povo... Mas eu não podia partir com essa tristeza inundada no peito, então eu preferi partir com a mesma esperança que ainda via em seus corações: a esperança que de uma maneira ou outra tudo vai dar certo no final..



Maíra Irigaray é advogada Internacional de Direitos Humanos e Meio Ambiente. Mestre em Direito Comparado pela Universidade da Florida. Atualmente Coordenadora de Campanha de reforma das Instituições Financeiras Internacionais para a Amazon Watch e Coordenadora da Frente "Bancos" para o Movimento Xingu Vivo para Sempre.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Os Tenharim, a ditadura e seus interesses na região


"É preciso que se faça uma investigação da ação nefasta da Ditadura Militar sobre mais esse povo indígena do Amazonas, com a construção da Rodovia Transamazônica e a instalação de seus projetos de interesse saqueador. Num momento em que mais um crime de morte foi cometido contra um líder indígena, o cacique Tenharim, e com mais ameaças em curso, se investigue e se punam os mandantes e as empresas que participaram e continuam participando desses crimes de ontem e de hoje", defende Egydio Schwade, da Casa de Cultura do Urubuí, Presidente Figueiredo, AM.

Eis o artigo.

Diante das novas agressões que o povo Tenharim vem sofrendo no seu habitat ao Sul do Amazonas, trago a público trechos de documentos que guardo na Casa da Cultura do Urubuí, ou seja, cartas de agentes do CIMI de 1981, onde estes já denunciam os interesses que comandam as agressões contra esse povo. Interesses não muito diferentes dos de hoje.

Veja este relato de 1981, de Exequias Heringer, vulgo Xará, e Ana Lange, ambos então agentes do CIMI atuantes naquela região do rio Madeira: “O grupo Paranapanema tem duas minerações de cassiterita na região: Igarapé Preto e São Francisco. Estivemos na primeira onde obtivemos informações com a equipe de engenheiros local. Lá a mineração se estabeleceu em cima da aldeia indígena (Tenharim), que teve de se transferir para uma área anexa. Não recebem qualquer tipo de assistência e se encontravam num triste quadro de catapora.

Outros Tenharim estão dentro da reserva a ser demarcada, mas estes declaram que não irão para dentro da reserva apesar dos insistentes convites da FUNAI. Em represália os funcionários da FUNAI transferem a responsabilidade de assistência para a mineração, que declara que os assiste, mas nada faz neste sentido. Hoje são apenas 22 índios. Daqui a dois anos acabará o minério e a Paranapanema implantará um projeto agropecuário, aproveitando a infraestrutura instalada. Enquanto isso os índios são aproveitados para serviços de limpeza, de carregamento, de caça. Nenhum dos engenheiros conhece a aldeia atual dos índios, e um deles chegou mesmo a declarar que trata-se de um grupo Karitiana, mostrando muito bem o que é o estilo Paranapanema em relação aos índios.”

Relato de agosto do mesmo ano de 1981, assinado pelo Coordenador do CIMI Norte I, Ricardo Parente, confirma as informações acima:

“…dados que pudemos recolher durante a nossa viagem na rodovia Transamazônica, trecho de Humaitá até a mineração de estanho pertencente à famosa Paranapanema, empresa nacional que conta com forte apoio dos meios militares. Quando chegamos na mineração, localizada no igarapé Preto, área usurpada dos Tenharim, o pessoal da firma nos disse que dias antes o supremo patrão da Paranapanema estivera no local com alguns generais especialmente convidados e amigos do maioral da empresa. O objetivo de tão inesperada visita era o seguinte: o chefão queria mostrar aos generais como funciona a mineração a fim de conseguir a aprovação militar para a exploração das ricas jazidas de estanho que estão em Ipitinga (Pitinga). A maior parte dessa jazida está em território dos Waimiri-Atroari. Informaram-nos que a empresa também está em contato com o Cel. Nobre da Veiga, presidente da Funai, a respeito do assunto. Sabe-se que em Ipitinga há uma das maiores concentrações de estanho que, segundo os cálculos dos engenheiros, durará cerca de 15 anos para ser esgotado. Eles pretendem construir uma pequena hidrelétrica própria para abastecer de energia o projeto e construir casas de alvenaria. Esses dados são muito preocupantes… se prenunciam muito desfavoráveis aos povos indígenas Waimiri-Atroari.”

E o relatório de Xará e Ana Lange nos fornece ainda outros dados preocupantes sobre os interesses da Paranapanema:

“Atualmente tem as seguintes minerações: Novo Planeta, no norte de Mato Grosso; Bacajás, no Pará; Maçanã (Massangana?), em Rondônia, além das duas citadas. No ano que vem implantará mais duas, sendo uma a chamada Ipitinga, que estará em sua maior parte dentro do território Waimiri-Atroari. Os engenheiros de minas que trabalharão em Ipitinga estão sendo treinados no Igarapé Preto e eles conhecem as dificuldades que a Paranapanema está encontrando para invadir a área indígena.
Recentemente o dono da Paranapanema, Otávio Lacombe, recepcionou um grupo de generais no Igarapé Preto, para convencê-los dos bons serviços que Ipitinga poderá prestar ao Brasil. Os engenheiros estavam exultantes com a impressão que os generais tiveram.”

E o relatório conclui: “A Paranapanema utiliza tecnologia importada dos EE.UU. e consultores americanos, canadenses e malasianos.”

Como se pode ver é preciso que se faça uma investigação da ação nefasta da Ditadura Militar sobre mais esse povo indígena do Amazonas, com a construção da Rodovia Transamazônica e a instalação de seus projetos de interesse saqueador. Num momento em que mais um crime de morte foi cometido contra um líder indígena, o cacique Tenharim, e com mais ameaças em curso, se investigue e se punam os mandantes e as empresas que participaram e continuam participando desses crimes de ontem e de hoje.


A questão Tenharim é uma questão de lesa humanidade que deve merecer providências do Ministério Público Federal, da Comissão Nacional da Verdade e da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA. É uma questão de justiça.

Fonte: IHU