Fonte: IHU
28/02/2014
“Antigamente
nós conseguimos evitar a obra de Belo Monte; hoje em dia, não se consegue mais",
constata um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário - CIMI.
Como um “organismo
oficiosamente” ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, e não “oficial”,
para ter mais “agilidade” na sua atuação, o Conselho Indigenista
Missionário – Cimi foi criado em 1972 e impulsionado por Egydio
Schwade e pelo padre jesuíta Antônio Iasi Jr., responsáveis pela criação do secretariado
executivo, que elaborou o primeiro plano de ação da organização. Num contexto
ditatorial, no qual a questão indígena era esquecida, o secretariado executivo
do Cimi surgiu com dois objetivos: “primeiro, organizar os indígenas para
que eles tivessem uma organização entre si, pudessem se conhecer, se reunir,
porque até então, desde 1500, não existiam organizações que defendessem os
direitos indígenas (...); e o segundo objetivo, mudar a pastoral indígena”,
relata Egydio Schwade, na entrevista a seguir, concedida pessoalmente
à IHU On-Line, em visita ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Egydio Schwade, que hoje mora no estado do Amazonas e
convive com os índios Waimiri Atroari, conta que o Cimi surgiu com a
proposta de pôr em prática as orientações do Concílio Vaticano II em
relação à evangelização dos povos e transformar a pastoral indígena da Igreja
da época. “O Concílio Vaticano II dizia que a Igreja deveria acabar com a
catequese, assim como os missionários teriam de procurar colher as sementes de
Deus ocultas nos povos. Então, ao invés de catequizar os índios, passamos a
evangelizá-los e a transmitir a Boa Nova, que se contrapõe à Má Nova. E qual
era a Má Nova para os índios? A perda de suas terras, de sua cultura, da
autodeterminação. Por isso, nós nos contrapúnhamos. Evangelização é o quê?
Ajudá-los a lutar pelas suas terras, pelo seu território e pela sua cultura,
porque quanto mais eles mantêm a sua cultura, mais se manifestam as sementes
ocultas de Deus”, descreve.
A atuação
do Cimi junto às comunidades indígenas acirrou os conflitos entre a
Igreja e os militares. Nesse contexto, Egydio Schwade assinala o protagonismo de padre Antonio Iasi Jr., hoje com 94 anos, autor do primeiro
documento a apresentar e analisar a situação dos indígenas que viviam no
Brasil. “Iasi foi o primeiro a fazer ‘balançar a ditadura militar’, porque
provocava os generais a partir da questão indígena. (...) Uma vez, ele foi
expulso aos empurrões da Funai, em Brasília, para nunca mais voltar. Mas dois
dias depois, me diz: ‘Egydio, está na hora de voltarmos à Funai.
Precisamos visitar o general’. Então, nós fomos”, lembra.
Entre os
documentos que repercutiram à época, Schwade destaca o Y Juca Pirama, elaborado por ele e Iasi, juntamente
com Dom Pedro Casal dá liga, Dom Tomás Balduíno, Elizeu Lopes, então frei
dominicano, Ivo Poletto e Frei Mateus, num encontro
realizado às escondidas, no interior de Goiás. “Muitos estranharam por que
eu não assinei esse documento, mas essa foi uma estratégia que adotamos a
pedido de Dom Pedro, que dizia: ‘não vamos arriscar tudo’. Como eu era
secretário do Cimi, foi melhor não assinar o documento, porque dessa forma
os militares não teriam motivo para fechar o secretariado do Cimi, que à
época era a instituição que dava impulso à questão indígena”, recorda.
Na
entrevista a seguir, Schwade conta a história do Cimi, sua
repercussão durante a ditadura militar e avalia a atuação da organização 41
anos depois.
Egydio Schwade é graduado em Filosofia e Teologia pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Foi um dos fundadores do Conselho
Indigenista Missionário - Cimie primeiro secretário executivo da entidade, em
1972. Hoje é colaborador do Cimi, residindo em Presidente
Figueiredo-AM.
Confira a entrevista.
IHU
On-Line - Quem é padre Antônio Iasi Jr.? Como e quando o senhor o conheceu?
Pode nos contar a trajetória dele?
Egydio
Schwade – Conheço padre Antônio Iasi Jr. desde os anos 1960 e, inclusive,
morei com ele em uma aldeia dos índios Rikbaktsa, no rio Juruena, noroeste do Mato
Grosso, em 1964. Ele sempre foi uma pessoa muito engajada, um padre jesuíta que
desde sempre trabalhou com os índios, em aldeias.
Em 1972,
nós criamos o Conselho Indigenista Missionário – Cimi e, a partir de
1973, foi criado o secretariado. Na ocasião, tornei-me o primeiro Secretário
Executivo do Conselho. Logo de início percebi que um trabalho como esse, de
âmbito nacional, não poderia ser realizado sozinho.
À época,
o Cimi era um organismo oficiosamente ligado à Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. Não tinha uma ligação oficial por
sugestão do então secretário-geral da CNBB, Dom Ivo Lorscheiter, que acreditava que o Cimi teria
mais agilidade se fosse um órgão oficioso. Então eu fui o responsável por
organizar a primeira equipe do secretariado executivo do Cimi. Como eu já
havia criado, em 1969, a Operação Anchieta - OPAN— hoje operação
Amazônia Nativa —, apelei para eles, que logo me cederam duas pessoas,
alguns padres redentoristas e um seminarista meio rebelde. Assim, formamos a
primeira equipe do secretariado executivo do Cimi, que organizou o
primeiro plano de ação do Conselho, com dois objetivos: primeiro, organizar os indígenas
para que eles tivessem uma organização entre si, pudessem se conhecer, se
reunir, porque até então, desde 1500, não existiam organizações que defendessem
os direitos indígenas — pouco se sabe sobre esse tipo de organização, e quando
há alguma notícia ao longo da história, é sempre de uma organização que esteve
diretamente a serviço do colonizador ou dos invasores portugueses ou
holandeses; e o segundo objetivo, mudar a pastoral indígena.
IHU
On-Line – O Cimi surgiu com o objetivo de ter uma atuação nacional?
Egydio
Schwade – Sim, nacional. Quando criamos o secretariado, decidimos que o Cimi deveria
olhar a questão indígena como uma questão nacional. À época, alguns
missionários ficaram muito chateados com isso, disseram que a Igreja já
não dava conta das missões da Amazônia e agora iria se interessar por
outros indígenas, como os da região Sul. Porém, nós sustentamos a criação e
atuação do Cimi e essa decisão foi de grande importância para o
dinamismo interior da organização. Nesse sentido, colaboraram principalmente os
leigos, através da Operação Anchieta, hoje conhecida como Amazônia Nativa.
IHU
On-Line – Em que consistia essa Operação?
Egydio
Schwade – Era inicialmente uma operação de missionários leigos da Igreja
Católica e Evangélica. Enquanto todas as dioceses ou ordens
religiosas se limitavam a seus territórios de atuação, a Operação Anchieta era
o primeiro organismo dentro da Igreja Católica e Luterana que abria horizontes
sem limites de prelazias e dioceses. Eles colocavam as suas pessoas à
disposição, localizavam aldeias e as mostravam aos bispos e padres, constituindo
novas paróquias e abrindo a missão.
No Sul, Egon Heck foi o primeiro coordenador do Cimi Sul e
um dos responsáveis por dinamizar o trabalho na região. Minha esposa, Doroti, que era catarinense, foi a primeira coordenadora do Cimi na Amazônia
Ocidental. E, nesse contexto, padre Iasi se juntou a nós, formando a
primeira equipe do Cimi.
Nosso
trabalho consistia em ajudar os índios a se conhecerem entre si, a conhecerem
as lideranças de diversos povos. Também tínhamos o objetivo de transformar a
pastoral indígena da Igreja da época, de acordo com a orientação do Concílio Vaticano II, o qual dizia que a Igreja deveria
acabar com a catequese, assim como os missionários teriam de procurar colher as
sementes de Deus ocultas nos povos. Então, ao invés de catequizar os índios,
passamos a evangelizá-los e a transmitir a Boa Nova, que se contrapõe à Má
Nova. E qual era a Má Nova para os índios? A perda de suas terras, de
sua cultura, da autodeterminação. Por isso, nós nos contrapúnhamos.
Evangelização
é o quê? Ajudá-los a lutar pelas suas terras, pelo seu território e pela sua
cultura, porque quanto mais eles mantêm a sua cultura, mais se manifestam as
sementes ocultas de Deus. Essa nova posição da Igreja criou grandes problemas
com oficiais militares. E, nesse contexto, deu-se uma das grandes missões de
padre Iasi. Ele foi o primeiro a fazer “balançar a ditadura militar”,
porque provocava os generais a partir da questão indígena. Padre Iasi não
tinha nenhum patrimônio, a única coisa que possuía era uma malinha. Se as
coisas cabiam lá dentro, ele as levava. Se não cabiam, ficavam.
IHU
On-Line - Onde padre Iasi viveu durante esse período?
Egydio
Schwade – Nossa sede deveria ser em Brasília, mas durante todo esse
período, eu mesmo, como Secretario Executivo, nunca fiquei um mês
consecutivo lá. Nós estávamos sempre nos interiores, justamente para abrir os
olhos dos padres, dos bispos, das prelazias, etc. Também tínhamos a
preocupação de que os índios tivessem a oportunidade de sentir que havia alguém
do lado deles para se organizarem. Então, nós estávamos onde a situação estava
mais “quente”.
Iasi foi
um dos que enfrentou as barras mais pesadas, porque ele via as coisas. Nesse
período de tensão com a ditadura, uma das nossas estratégias — talvez até de
sobrevivência — era recorrer à imprensa, aos jornalistas, e tínhamos
jornalistas de peso do nosso lado. Quando entrávamos nas cidades, éramos
cercados de jornalistas — Iasi e eu principalmente —, porque sempre
tínhamos o cuidado de não expor demais os leigos, que geralmente eram a parte
mais frágil. Houve uma época em que a ditadura militar começou a censurar os
jornais, e essas censuras atingiram a questão indígena. Mas, assim mesmo,
quando não conseguiam publicar em um jornal, os jornalistas publicavam em
outro.
IHU
On-Line - Qual foi a importância e a repercussão, à época, do documento Y Juca
Pirama - o índio, aquele que deve morrer, do qual Iasi foi autor?
Egydio
Schwade – Quando assumi o secretariado do Cimi, fiz uma viagem pelo
interior do país, e na volta organizamos uma reunião com alguns bispos para
falar da situação indígena no Brasil. Padre Iasi foi quem escreveu o
primeiro texto da situação indígena no país. Como era ditadura, nos reunimos às
escondidas no interior de Goiás, no município de Abadiânia, entre Brasília e Goiânia.
Estiveram presentes Dom Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno, Elizeu
Lopes, então frei dominicano, Ivo Poletto, Frei Mateus, Iasi e eu. Nesse
encontro, chegamos à conclusão de que o Cimi deveria se posicionar
ante essa situação dos índios brasileiros. Escrevemos, então, o documento Y
Juca Pirama, que teve bastante repercussão. Muitos estranharam por que eu não
assinei esse documento, mas essa foi uma estratégia que adotamos a pedido de
Dom Pedro, que dizia: “não vamos arriscar tudo”.
Como eu
era secretário do Cimi, foi melhor não assinar o documento, porque dessa
forma os militares não teriam motivo para fechar o secretariado do Cimi,
que à época era a instituição que dava impulso à questão indígena. Eu também
fui responsável por procurar os bispos do Sul que quisessem assinar o
documento. À época, somente um bispo quis assinar, o bispo de Palmas -
PR — nem esperávamos que fosse assinar —, e mais dois padres de lá.
IHU
On-Line – O Cimi não teve repercussão dentro da Igreja da época?
Egydio
Schwade – O episcopado ficou bastante na “moita”, porque o governo
estava sempre “em cima”. Tínhamos de fazer tudo escondido. Eu era
responsável pela entrega do material de leitura que era enviado para leigos e
padres, e lembro que certa vez telefonei de Brasília para Goiânia para pedir um
estoque de textos sobre a questão indígena. Precisava fazer a solicitação a um
leigo da prelazia de Dom Pedro, que era o responsável pela
distribuição do material. Telefonei, mas ele estava viajando. Nesses casos,
tínhamos de falar com as pessoas através de uma senha, que era “material
escolar”. Ou seja, pedi para providenciarem mais “material escolar”. Quando
cheguei a Goiânia para buscar o material, uma leiga da diocese de Dom
Tomás, que foi fazer a entrega, estava trêmula, com um “pacotinho” na mão,
e me disse que o Moura (um leigo) acabara de ser preso. Passei muito
medo naquela noite, pois a única pessoa estranha que entrou no ônibus que
peguei para voltar a Brasília se sentou justo atrás de mim.
IHU
On-Line - Como foi estar à frente do Cimi no período militar? Quais
dificuldades vocês enfrentaram nesse período?
Egydio
Schwade – A nossa sorte foi contar com a ajuda da imprensa. Ela foi
responsável por todo o avanço da questão indígena. Não foi o ABC que
balançou a ditadura — esse já era o período final. A nossa sorte foi contar com
a participação dos jornalistas, que tomaram a decisão de tornar pública a
questão indígena a qualquer custo. Com isso eles nos evidenciavam quase toda
semana nos jornais, o que dificultava uma posição contra nós por parte dos
militares.
IHU
On-Line - Existem casos de tortura entre os membros do Cimi?
Egydio
Schwade – Os membros do Cimi foram retirados de suas áreas,
como, por exemplo, no Acre, onde havia uma equipe de três pessoas: uma
assistente social, um professor e uma enfermeira. Eles foram retirados de suas
áreas sob tortura. Uma vez, o Iasi também foi expulso aos empurrões
da Funai, em Brasília, para nunca mais voltar. Mas dois dias depois
ele me diz: “Egydio, está na hora de voltarmos à Funai. Precisamos visitar o general”. Então, nós fomos.
IHU
On-Line - O Cimi tinha um diálogo estreito com a Funai?
Egydio
Schwade – Não. Nós íamos reclamar as posições. Nossa posição era — e a
posição do Cimi ainda é esta — cobrar ações em favor do índio e o
cumprimento da legislação indigenista. Nós questionávamos a política do
governo, que era contra a legislação indigenista.
IHU
On-Line - O senhor tem contato com padre Iasi?
Egydio
Schwade – Ele está com a saúde muito debilitada, mas mantém o mesmo humor.
Enquanto ele teve forças, esteve sempre nos ajudando na questão indígena.
IHU
On-Line – Que rumos o Cimi tomou depois da ditadura?
Egydio Schwade
– Em primeiro lugar, acredito que o Cimi continua na posição
correta de questionar a política indigenista brasileira, a qual permanece nos
mesmos moldes em que foi deixada na ditadura militar. Houve uma pequena
tentativa de mudança, que começou com a criação de uma equipe formada pelos
índios Waimiri Atroari, pelo Cimi, pela Funai, por alguns
advogados e professores de universidades, que reencaminharam toda política
indigenista. Mas, menos de dois anos depois, minha esposa e eu assumimos o
trabalho com a comunidade Waimiri, fizemos a primeira alfabetização na
língua desse povo, e eles começaram, espontaneamente, a revelar que mais de
dois mil índios foram mortos durante a ditadura militar. Como a Funai estava
envolvida com as mortes, a nova política indigenista passou para uma empresa
que também estava interessada em ocultar os fatos, e a mudança na política
indigenista parou por aí.
Em nível
nacional, a Funai se reencaminhou com a posição do senador Romero Jucá, que até hoje é inimigo dos índios. Eles,
então, retomaram o roteiro da ditadura militar e passaram a investir nos
grandes projetos de mineração, de hidrelétricas, os quais estão muito mais
agressivos do que durante a própria ditadura. Antigamente nós conseguimos
evitar a obra de Belo Monte; hoje em dia, não se consegue mais.